E continuando por Moçambique… A Aldeia das Catarinas

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crónica originalmente publicada no Fugas do jornal Público:

“A aldeia das Catarinas

Sempre quis ser jornalista, há já alguns que o sou, mas nem sempre o fui. Lá pelo inicio do milénio, num Verão quente africano, embarquei rumo a Moçambique, onde lá para os lados da Cidade da Beira me entreguei num projecto de voluntariado. Uma casa de chapa de zinco, um calor abrasador, calções e sandálias. Como única exigência deixei bem expresso que não queria trabalhar em nenhum hospital. Faz-me impressão o sangue, a dor, o sofrimento.

Ainda bem que não me esqueci de sublinhar o pedido. Logo na primeira manhã de trabalho, tarefas distribuidas, plano traçado e ala que se faz tarde, quando dei por mim, já só me faltava a bata branca e a caixa das compressas.



Preparada para o pior, lá resolvi encaixar o facto como consumado: durante três meses tinha-me calhado na sorte fazer o acompanhamento pré-natal no Centro de Saúde do Alto da Manga, uma aldeola de palhotas e coqueiros a pouco mais de uma dezena de quilómetros da Cidade da Beira.

Como Centro de Saúde, uma casa de cimento de ar meio abandonado, paredes negras, buracos, portas de madeira carcomida, telhado de chapa. Umas macas desengonçadas de pés ferrugentos, uns degraus a fazer de bancos. E eu, por ali especada, com quarenta grávidas de olhos muito abertos. Era eu a nova doutora? De calções e t-shirt?

No meio de tudo isto, para não faltar à história, um calor húmido, um pó vermelho sufocante e uma mosquitada sem igual.

Uni-me de forças e juntei-me à Graciosa, enfermeira de anos largos, a quem coube ensinar-me as artes do oficio. Como medir barrigas com fita métrica para saber o tempo de gravidez, como encostar um aparelhómetro à barriga para ouvir o batimento cardiaco do bebé, como substituir as ocidentais ecografias pelo método africano da apalpação.  Tudo muito rudimentar, numa sala minima com uma marquesa torta e uma balança pré-histórica. Durante dois meses foi ali que passei as minhas manhãs. Primeiro sob a desconfiança das mãezinhas locais, aos poucos com o olhar agradecido de quem lhes ajudou os filhos a nascer. Sempre de calções, t-shirt e sandálias. Sem bata nem estetoscópio, mas cada dia com uma alegria maior. Como recompensa, ao final do primeiro mês começaram a nascer as primeiras Catarinas. Em jeito de homenagem “à minina doutora”, como me chamavam. Até partir, perdi a conta às crianças que nasceram pela Manga já baptizadas com o meu nome. “Se for minina, vai ser Catarina, se for minino, vai ser Catarino”, diziam-me elas de capulanas vivas e ventre cheio. Promessas cumpridas, chegou ao fim o meu Verão. Voltei para o jornalismo, perdeu-se uma médica. Fica a recordação de uma aldeia lá longe. A aldeia das Catarinas.”

 

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