Pode se, mas não é a mesma coisa.
… E o que eu gostei da cidade de Santiago…
Entre os Andes e o mar
Dezasseis anos depois do fim da ditadura de Pinochet, Santiago do Chile está cada vez mais longe da América Latina e mais próximo de Nova Iorque. Entre lojas dos principais estilistas mundiais e alguns dos melhores restaurantes do mundo, já há mesmo quem apelide a capital do Chile de “Sanhantan”. Uma mistura do glamour de Park Avenue e da excentricidade do Soho, mas com o “salero” exclusivo dos países latinos. Uma viagem única a uma cidade que já é do mundo.
Existem cidades que não precisavam de muito para já ser muito. Muito bonitas, neste caso. O Rio de Janeiro não precisava de mais nada para lá dos seus morros, lagoa e mar, Lisboa poderia ficar-se pelos seus entardeceres junto ao Tejo, Maputo pelo cheiro a terra africana, Sidney pelas praias de águas cálidas.
E é assim também Santiago do Chile. Grande cidade latina com nome de santo e alma de poeta, não precisava de ter muito para já ser linda de morrer. Bastava-lhe apenas ser.. Podia até ter apenas três ruas e quatro casas, ou nem isso. Já teria tudo. Dúvidas? Imagine-se então um planalto a perder de vista que só acaba no mar, lá longe, onde a imaginação chega mas o olhar não. Imagine-se a cordilheira dos Andes em redor, de cumes nevados em pleno Verão, de encostas cor de cobre ao pôr-do-sol. Imagine-se. Venha comigo, suba ao Cerro de San Cristobal, traga um cálice de Pisco Sour, debruce-se sobre a cidade, sinta-se rei e senhor e fique um pouco mais por aqui. Ao sabor de uma brisa quente, antes de um jantar pela noite dentro, numa capital que dorme cada vez menos. É assim Santiago, uma cidade que já valeria a pena mesmo antes de ser cidade, mesmo antes de ser aquilo que agora é. Fashion, trendy, cheia de vida, de moda, de riqueza, de requinte europeu, de glamour nova iorquino, mas também com salero. Afinal, estamos na América Latina e não é possivel apagá-lo (graças a deus ou a quem por aqui tem passado).
América Latina, essa mesmo, a das ruas largas, das praças imponentes, das catedrais que caiem secularmente à força de terramotos e se reconstroiem vezes sem conta pela força dos homens. A América Latina das revoluções feitas a golpes militares, dos regimes impostos a canhão, das lutas mas também dos renascimentos. Para a democracia, para a alegria em viver e em viver bem. E em Santiago do Chile vive-se bem, cada vez mais. A economia não pará de crescer, os níveis de poluição cairam a pique em virtude da criação nos últimos anos de inúmeros parques e jardins, as grandes cadeias de moda, cafés e restaurantes internacionais vieram para ficar, os novos designers arriscam na euforia vibrante que se sente, os exilados voltaram de 17 anos de didatura cheios de energia, ideias originais e dispostos a apostar. Em grande. Tudo em Santiago é em grande. E não falta espaço por onde crescer, entre a cordinheira dos Andes a 30 quilómetros de distância, onde se pode esquiar nalgumas das melhores estâncias da América do Sul, e as praias do Pacifico, a uma hora de caminho.
Na cidade do planalto e dos entardeceres cor de cobre, o céu é o limite e mesmo esse, está quase a ser alcançado pelos inúmeros arranha-céus espelhados que têm vindo a despontar pela cidade.
Oprimidos e massacrados durante quase duas décadas de ditadura, os chilenos estão acima de tudo determinados em mostrar que também têm personalidade própria, que também têm afirmação, que também conseguem fazer bem, muito bem, do melhor. Não é por acaso que o hotel Ritz Carlton de Santiago é considerado um dos melhores hotéis da América do Sul, ou que o restaurante Agua foi referenciado pela revista Conde Nast Traveler, como um dos 50 melhores restaurantes do mundo desde Bangkok a Beverly Hills. Estivemos lá e percebemos porquê. Começando pelo Ritz, inaugurado apenas há dois anos atrás no bairro sofisticado de Las Condes, é o primeiro hotel desta companhia em toda a América do Sul. Uma estreia em grande, estilo clássico, com grandes lustres no átrio, sofás de pele e reposteiros. No último andar, bem lá no cimo, em pleno 15º piso, aquilo que mais se pode assemelhar a um mergulho no paraíso. Pela manhã, ao final da tarde ou mesmo à noite, não deixe de reservar tempo para subir até à piscina, enorme, envidraçada, iluminada de velas durante a noite e com uma soberba vista sobre os Andes nevados durante o dia. Para relaxar. Para ficar. Para sonhar que irá ficar por aqui para sempre. Vale a pena nem que seja só por uns minutos. Antes de um jantar no Aqua, lá para os lados de Vitacura, bairro trendy de Santiago, qualquer coisa entre um Soho e uma Park Avenue nova iorquina, onde não faltam as boutiques Luis Vuitton e as Cartier da praxe.
Desde há uns seis anos para cá que Vitacura se tem vindo a impor como o bairro da moda requintada e o Aqua não poderia ter escolhido outra localização. Inaugurado em 2000, surgiu então com o objectivo de se tornar uma referência, de ser único, de preencher um lugar até então vago na capital chilena. Um conceito vanguardista que passa pela base de cozinha nacional com influências modernas, uma decoração minimalista em tons de branco, um pequeno lago interior, uma esplanada ampla. Para jantar um “Mero de aguas frias com tomilho”, acompanhado de ostras e alcaparras, ou um “Atum de Isla de Pascoa”. Ao som de chill out. Pela noite fora, saboreie. Norah Jones é uma das presenças assíduas. Cecilia Bolloco, ex-miss Universo, também.
Mas Vitacura não é só noite. Bairro de ruas amplas, vivendas muradas e pequenas moradias arquitectadas com o mais puro design, Vitacura é também a passagem de modelos das meninas bonitas de Santiago do Chile, de cãezinhos pela trela e passo de manequim, dos grandes carros escuros das senhoras com motorista e cartões de crédito brilhantes, das lojas de designers nacionais em carreira fulgurante, das fashion victims fantasiadas de indiferentes, das lojas de vinhos de marca nacional e de reputação internacional – Concha y Toro -, das grandes boutiques de nomes da alta costura do mundo – Max Mara, Burberrys, Hermés etc -, das galerias de arte, das lojas de mobiliário de design – Duomo, Loft, Olika.
Vitacura é por onde Santiago passa quando tem dinheiro, poder, glamour.
Quem é Pablo Neruda afinal? No bairro trendy de Santiago, ninguém duvida que o chefe Carlos Meyer é bem mais conhecido do que o maior poeta nacional. Mais que não seja pelos prémios ímpares que tem vindo a coleccionar à frente daquele que é desde 2001 considerado pela elite chilena como o melhor restaurante da cidade: El Europeo. Requintado, com toques únicos, um jardim interior, uma brasserie ao fundo, no meio de palmeiras e heras.
O segredo do sucesso? “Não ter entrado só com o dinheiro, não ser só o dono, mas também estar cá a trabalhar”, segundo revela Carlos Meyer sem rodeios, para rematar de seguida; “Sabe qual é o problema dos chilenos? É não gostarem muito de trabalhar, gostam sim de ser patrões e claro que depois os negócios não correm bem”. Ou não corriam. “Agora há dinheiro, agora está a economia a crescer, agora resta ver se tudo continua assim.” Caso contrário, “lá se vai o restaurante” e o investimento no curso de hotelaria na Suiça, onde Meyer, outrora menino rico da elite de Santiago, aprendeu que tudo se faz “à custa de muita perseverança, trabalho e honestidade.” Três predicados a que nós juntamos mais um: um talento sem igual. Para cozinhar, claro está. Por isso El Europeo é a nossa escolha Blue. Pela entrada de bife tártaro, pelo Mero da Patagónia com lagosta e fettucini negro, pelo Cabernet Quinta Geración 2002, pelo sorvete de vodka com “limón de pica” – limas que só existem no Norte do Chile e no Peru.
Já tinha escrito que o El Europeu foi galardoado por três anos consecutivos como o melhor restaurante de Santiago? Pois mereceu-o. Absolutamente. Ou como diria a sua vizinha, Veronica Blackburn: “Absolutely”. Com uma pronúncia o mais “british” possivel, ou não fosse a ascendência europeia e o estilo afectado, já um toque de marca desta autêntica Martha Stewart chilena. Muito loira, olhos de um azul muito pouco latino, há que dizer que Veronica, antiga apresentadora de um programa de culinária na televisão chilena e actual dona de um dos cafés mais in de Santiago – Blackburn Caffe -, não difere muito da maioria da elite local. Longe dos traços sul-americanos, a maioria da sociedade chilena – a classe alta, entenda-se- prima pelos apelidos europeus, a tez pálida, os olhos claros. Reminiscência de uma colonização feroz e de uma ditadura a ferro e fogo.
Dois assuntos que não preocupam Veronica, actual imperatriz do “império das senhoras que almoçam” – loja de produtos de cozinha importados de França e Itália, onde também se servem almoços num jardim que se estende pelas traseiras.
Confessa fã de de Amália Rodrigues e de Pinochet, a loira Veronica é o exemplo acabado de quem não tem nada a esconder e que tem muito orgulho naquilo que é. “Não sirvo jantares, só almoços, de outra forma não teria tempo para viver”. “A minha cozinha não é de fusão, agora toda a gente tem a mania de chamar a tudo de fusão, não há paciência, quanto muito, a minha é de autor”. “Sim, acho que os anos de ditadura não foram assim tão maus como as pessoas os pintam. A verdade é que éramos um país terceiro mundista onde não havia sequer um supermercado e agora somos um país avançado, um país próspero cheio de estrangeiros. Mesmo as pessoas que foram para os exílios, voltaram muito mais refinadas, aprenderam coisas que agora podem ensinar aos que cá ficaram”, diz sem rodeios. “Já reparou como Santiago está parecido com Manhantan? E está mesmo. Até já chamam de Sanhantan, agora sim dá gosto viver cá”, remata Veronica de gargalhada solta.
Mas Santiago do Chile está longe de se ficar só por Vitacura e pelas elites louras.
Pela cidade fora, das zonas ricas de El Bosque Norte e Las Condes, passando pela Providência até à La Chascona, antiga casa de Pablo Neruda e actual zona de ateliers de artes. Santiago também é poesia.
Continue pelo centro histórico da Plaza de Armas e da La Moneda – ainda com uma parte destruída pelo golpe militar que depôs Salvador Allende – passeie pela cidade, da Bolsa do Comércio ao Ex- Palácio do Congresso, percorra a Alameda, vá até à Plaza Italia, às velhas mansões coloniais do Barrio Brasil, à Igreja de São Francisco – a construção mais antiga da cidade, onde se pode ver uma imagem da Virgem do Socorro trazida para o Chile pelo conquistador espanhol, Pedro de Valdivia. Santiago também é história. Também é passado.
Com tempo e calma. Ao sabor de uma cerveja Escudo numa das muitas esplanadas do bairro da Bellavista, encruzilhada de ruas boémias onde ao final da tarde se reúne a juventude chilena em inicio de noite longa. Depois de uma subida ao Cerro de Santa Lucia ou ao Cerro de San Cristobal, dois miradouros onde vale a pena ir para admirar a cidade de cima, já sem o “smog” de outrora, mas com a vista única de uma Santiago de agora. Uma Santiago nova, viva, vibrante. Onde empregadas de avental bordado, cruzam-se nas ruas com adolescentes fardados do colégio, parados nas esquinas em beijos lânguidos. Passam empresários de fato Hugo Boss, passam senhoras da alta sociedade de carteira Gucci, passam jovens rebeldes de piercings e tatoos. E ninguém liga nenhuma. Foram-se os tempos, É uma nova era. Há placards no metro a passarem poemas de manhã à noite, há obras de arte de artistas nacionais expostas no meio da rua, há internet de acesso livre e gratuito em cada estação, há bibliotecas improvisadas em cada paragem de transportes públicos. Poder-se-ia chamar uma revolução da cultura, Dee Taylor, neo-zelandesa há dez anos radicada no Chile, prefere chamar-lhe “uma revolução da alegria.” “As pessoas aqui passaram por tanto, sofreram tanto, viram desaparecer tanta gente – familiares, amigos – que agora estão eufóricas. Só querem viver, aproveitar, é a liberdade e a liberdade é um bem muito precioso”, explica Dee, na esplanada do seu restaurante: Akarana, em pleno bairro do Golf, outra das zonas ricas da cidade.
Para acompanhar a conversa dá-me a provar uma das especialidades, “Pisco com lychias” – soberbo – traz-me umas tapas de “nuevos tesoros del mar”, aconselha-me a provar o sushi, o wasabi e o “salmon roll in tempura”, enquanto me conta a história da sua vida. Provo tudo. Fico deliciada. Com a comida e com a vida de Dee. Uma ex-economista de cabelo loiro espetado que deixou o seu país para vir atrás de uma paixão chilena. Perdeu a paixão, esqueceu-se do caminho de volta para o seu país, deixou a sua profissão, montou um restaurante e ganhou outra terra: o Chile. “Santiago é agora é a minha casa. Sinto que é aqui que está tudo a acontecer, ou que está tudo prestes a acontecer. Sinto que é que aqui que estou no centro do mundo e essa é uma sensação única”, remata de sorriso feliz. E eu sorrio com Dee.
Talvez pelos cocktails de Pisco, talvez por ser verdade. Faço das suas as minhas palavras. Lá do outro lado do mundo, de onde vim para contar que é entre os Andes e o Pacifico que o futuro está neste momento a acontecer.
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