Crónica originalmente publicada há cerca de 4 anos no Fugas:
“O “Pato Donald” da Baía
Viajar não é só conhecer países, cidades, praias e afins. Viajar também é conhecer pessoas. Felizmente já tive a oportunidade de viajar muito. E de conhecer muita gente também. De diferentes culturas, línguas, dialectos, raças e credos. Com diferentes histórias de vida, rumos e paixões.
Vem isto a propósito do Papa Bento XVI ter vindo a público recriminar os aplausos durante as eucaristicas. O que tem isto a ver com viajar? Passo a explicar. Há dez anos atrás passei dois meses em Barreiras, uma terra no interior do estado da Baía, a fazer voluntariado numa favela perdida do mundo. Foi aí que conheci o padre Donald, senhor daquela terra, pai de todas aquelas almas. Sósia perfeito do actor Robin Williams, homem dos seus 60 anos, de olhos azuis cristalinos e um sorriso à flor da pele. De nacionalidade neo-zelandesa e vida dedicada à missão, fazia então já há uma década que vivia em Barreiras, abençoando aquela gente com a força do seu trabalho incansável. Palminhando quilómetros por dia ao volante de um carocha vermelho baptizado de Zézinho, ou de bicicleta “pasteleira”, era ver o padre Donald dia após dia, bairro abaixo, bairro acima, à chapa do sol, contrariando os anos e a natureza, distribuindo conselhos, festas e consolos. Sempre com uma mão amiga, sempre com uma gargalhada, sempre com uns olhos muito abertos. De calções ruços, sandálias de couro e sacola ao ombro. Naqueles confins de terra em que nem “o português de Portugal” percebem, não havia ninguém que não compreendesse o dialecto atabalhoado do padre Donald, uma mistura de “português do Brasil” com sotaque da Nova Zelândia.
Enchiam-lhe a casa, enchiam-lhe a missa, enchiam-lhe as ruas à sua passagem, numa devoção sentida. Nunca vi fé como aquela. Não sei se pela igreja, não sei se pelo “Pato Donald”, como lhe chamavam as gentes locais. Mas estou em crer que uma coisa levava à outra.
A verdade é que durante dois meses não perdi uma única missa de final de tarde na igreja do bairro. De chapa de zinco e desenhos infantis nas paredes. De bancos cheios e multidões à porta. De cantares à desgarrada, de músicas de coração cheio, de “pele de galinha” e samba no pé. Com um “Pato Donald” sempre de sorriso largo, a dar o mote, a cantar, a dançar e, sacrilégio dos sacrilégios, a bater palmas. A ele, a nós, à vida, a Deus. Com uma inocência quase a roçar o infantil, com uma bondade infinita. Se era aquilo que o povo queria, era aquilo que o povo tinha, o que interessava era trazer as pessoas para a igreja, o que interessava era criar ali, ao final da tarde, um tempo de festa, de alegria, tão longe da miséria do dia a dia.
Fui-me embora no final do Verão, num dia ao entardecer, num “ónibus” rumo a Sul, com o Padre Donald a pedalar atrás num estrada sem fim, comigo colada ao vidro da janela traseira num adeus que permanece até hoje. Nunca mais tive noticias suas, mas sei que estiver onde estiver, continua de certeza a merecer o meu aplauso.”
Blog Comments
Lucia
23 de Novembro de 2013 at 11:20
Há pessoas que nos inspiram! E que fazem mesmo a diferença.
pelomundo13
23 de Novembro de 2013 at 17:53
Se fazem 😉 Até hoje tenho muitas saudades do “Pato Donald”