Na capital indiana estima-se que vivam mais de 180 mil crianças entre os 5 e os 15 anos sem um tecto. Vendem lenços, pedem esmola, comem do lixo, dormem ao relento. O dinheiro que ganham? Gastam a ver filmes de Bollywood.
Barak tem uns olhos grandes. Muito escuros. Oito anos num corpo franzino, de pés sujos e roupa esburacada. Um sorriso encardido dos cigarros que fuma desde os 6 anos. E uma história de vida sem lugar para brincadeiras de infância.
Espancado pelo pai, desprezado pela mãe, irmão mais novo de meia dúzia, resolveu fugir de casa aos 5 anos e rumar a Deli para tentar outra vida. Uma nova vida. Nascido em Chennai no Sul da Índia, empreendeu a viagem saltando à socapa para dentro de um comboio. Demorou mais de duas semanas a chegar a Deli. Foi comendo dos restos que encontrava nos caixotes do lixo e ganhando alguns trocos a engraxar sapatos nas estações de comboio.
Durante o percurso conheceu mais outras crianças que, como ele, também tinham fugido de suas casas e iam a caminho da capital indiana. Não se tornaram amigos, “não há amigos nas ruas”, mas comparsas. “Fazemos juntos pequenos roubos, fugimos à policia, defendemo nos dos gangues dos mais velhos”, explica Barak.
Chegado à cidade, o menino dos olhos grandes começou por vender lenços nos semáforos, passou mais tarde a vender rosas que roubava dos jardins públicos e agora por fim, dedica-se a vender balões à porta do Memorial a Gandhi.
“É dinheiro fácil, porque não tenho que convencer os pais, basta os filhos começarem a fazer uma birra que querem um balão e eles compram”.
Quando cai a noite, Barak recolhe à estação de comboios de Nova Deli. Estima-se que todas as noites durmam aqui cerca de 2500 crianças escondidas entre as plataformas. Há quem prefira os esgotos. Há quem consiga construir uma pequena tenda de trapos debaixo de um dos viadutos da cidade. E há quem viva assim durante muitos anos. Sem destino nem horizonte para lá do dia presente.
Segundo as últimas estatísticas, só em Deli existem mais de 180 mil crianças a viver nas ruas. Como Rav, 13 anos, natural de Shantiniketan, já quase na fronteira com o Bangladesh. Abusado sexualmente pelo padrasto desde que a memória lhe permite recuar no tempo, resolveu bater com a porta de casa aos 9 anos. Deli, pareceu lhe o destino lógico. “Fascinava-me a ideia de uma cidade grande, dos monumentos bonitos, dos carros brilhantes, dos prédios altos e das avenidas largas”.
Não sabia é que para ter tudo isso, teria que viver num esgoto durante 3 anos. Hoje “a vida deu um pulo” e como arranjou emprego a fazer biscates numa loja de chá – ganha 15 euros por mês-, o dono deixa-o dormir nas traseiras. Ao relento, mas pelo menos está protegido dos ataques da policia. Um dos maiores “inimigos” dos miúdos que vivem pelas ruas da cidade. “Batem-nos, expulsam-nos de todo o lado, são uns sacanas”, queixa-se Rav. “Foram muitos anos a fugir deles, a pedir esmola nos semáforos e a separar lixo para vender trapos, cartão e plásticos…..”
Em comum com Barak, o adolescente, tem uma paixão: os filmes de Bolywood. “Quase todo o dinheiro que ganho gasto em bilhetes de cinema. Eu e a maioria dos miúdos que vivem nas ruas.”
Em comum também têm outra coisa: ambos fazem parte de uma estatística que coloca Deli como sendo a cidade mais perigosa do mundo para as crianças. Segundo um relatório realizado pelas Nações Unidas em colaboração com o Governo estatal, é na capital da Índia que acontecem o maior número de delitos contra menores. Apesar da proibição legal, o mesmo relatório revela que em toda a Índia existem quase 13 milhões de crianças forçadas a trabalhar..
Como Barak, como Rav. Como tantos outros. Um relatório da UNICEF revela que o número de crianças de rua no território indiano ascende aos 11 milhões. A maioria destas vive sem água potável, sem saneamento básico, e sem acesso a cuidados de saúde.
Suni foi durante 4 anos mais um número nesta estatística. Nascido numa família de sem-abrigo, perto de Udaipur, resolveu fugir de casa com 5 anos, atrás de um irmão mais velho. Mal chegou a Deli, perdeu-lhe o rasto durante uma luta entre gangues rivais. A estação de Nova Deli também se tornou a sua casa. De dia ganhava uns trocos a limpar os vidros dos carros nos semáforos e a roubar fruta das bancas para vender a turistas junto aos monumentos nacionais.
Suni perdeu a conta às vezes que foi espancado pela policia, às vezes que foi espancado por grupos de miúdos mais velhos que acharam que ele lhes estava a roubar o negócio. Suni perdeu a conta às noites que passou ao relento. Suni nem nunca soube fazer contas. Até ao dia em que foi resgatado pela organização Salaam Baalak, uma das muitas associações que existem na cidade de Deli para prestar apoio às crianças sem-abrigo.
Criada em 1988, por Praveen Nair, esta instituição já tirou da rua mais de 42 mil miúdos. Suni foi um deles.
“Por incrivel que possa parecer foi preciso virem ter comigo várias vezes para que eu me convencesse a sair da rua e a ingressar num dos centros da Salaam Baalak. È complicado, depois de estarmos muitos anos por nossa conta e risco, às vezes preferimos passar fome e frio do que perdermos a nossa liberdade”, explica o jovem.
Hoje com 20 anos, Suni é guia da instituição que para angariar fundos também organiza visitas guiadas ao submundo das crianças das ruas de Deli. De sapatos engraxados e camisa engomada, nada faz crer que este rapaz alto e de ombros largos viveu durante anos sem-abrigo. À frente de um grupo de cinco ingleses, a caminho da estação que um dia foi o seu lar, empina o peito e apresenta um sorriso de dentes brilhantes. Na Salaam Baalak, Suni ganhou um lar, aprendeu a falar um inglês perfeito, estudou, ganhou um futuro.
“Dantes o meu único objectivo na vida, tal como o da maioria das crianças que andam a mendigar pelas ruas da cidade, era ganhar o dinheiro suficiente para comprar o bilhete para ir ver um filme de Bolywood, agora tenho o objectivo de continuar a estudar. Quero ser guia turístico, quero ter a minha casa, a minha mulher, a minha família.”
Para a maioria dos turistas que Suni acompanha, “conhecer a realidade das crianças de rua é conhecer melhor a realidade do país, para lá dos palácios e dos templos.” Para Salaam Baalak, por sua vez, é uma das formas de conseguir angariar dinheiro para seguir em frente com os seus projectos. Nesta altura já são 900 crianças a viverem e a estudarem nos centros da instituição. Rapazes e raparigas, dos 5 aos 18 anos.
Para Suni, esta organização “funcionou como o pontapé de arranque para uma nova vida”. Para todas as crianças que ainda vivem na rua, pode “funcionar como uma luz ao fundo do túnel”, acredita este. “Porque nunca se pode deixar de crer que a qualquer momento a nossa vida pode dar uma volta e tornar-se naquilo que vemos nos filmes”, remata com um sorriso largo.
Texto originalmente publicado na revista Tabu no jornal Sol
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