Há um ano atrás andava eu por aqui…e que terra maravilhosa…
“Viagem à “Terra Dourada”
“Templos e pagodes a perder vista, folheados a ouro, quase mais carroças do que carros, planícies cor de fogo um povo do mais simpático que existe, paisagens arrebatadoras, um enorme lago entre brumas. Monges e mais monges, mercados de mil aromas. De Yangon a Bagan, uma viagem por Myanmar, naqueles que se espera serem os seus últimos tempos de ditadura.”
“Isto é a Birmânia (actual Myanmar), uma terra totalmente diferente de qualquer outra que se possa conhecer”, escreveu o Nobel da Literatura, Rudyard Kipling, em 1898. Mais de um século depois, as suas palavras parecem ter ficado suspensas no tempo e a antiga Burma continua a ser um mundo completamente à parte.
Tão belo quanto pouco desenvolvido. Tão afável quanto misterioso. Tão pobre quanto rico. Com um povo tão sofrido quanto apaixonado. Com uma fé inabalável e uma estoicidade única.
Com cidades caóticas como Yangon ou Mandalay, com paisagens de uma profunda paz como Bagan com os seus 3 mil templos, com um lago de uma beleza ímpar como o lago Inle.
Myanmar é sem dúvida uma terra à parte e um dos destinos mais exóticos no mundo. Até há bem pouco tempo de portas fechadas ao exterior, isolada por um embargo internacional e de costas voltadas ao turismo.
Myanmar, lá longe, de onde apenas nos acostumámos a ouvir (más) noticias de uma Junta Militar que, sem dó nem piedade, governa o país desde 1962, e de uma exemplar guerreira de seu nome Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da Paz, que desde 1988 luta pela vitória da democracia no seu país. Depois de 15 anos em prisão domiciliária e de uma vitória com 90 por cento dos votos nas eleições de 2012 – o que mesmo assim não destronou a Junta Militar – os birmaneses mantém agora a esperança focada em 2015, altura em que voltarão às urnas e em que acreditam que será então derrubada a ditadura.
Enquanto o futuro não chega, Myanmar vai vivendo os seus dias (quase) cristalizada no tempo. Tal cenário de filme de época. Não há rede de telemóvel, a internet – para a população local – existe mas é tão cara quanto lenta, nas ruas das cidades vêem-se bancas a alugar máquinas de escrever para se alguém precisar de dactilografar um texto e até há escassos meses não havia caixas multibanco.
Em todas as cidades e vilas existem “internet cafés” mas só os estrangeiros têm acesso e o passaporte fica registado. Os jovens, pelo menos alguns, já começam a usar penteados excêntricos e a trocar o “longhi” – traje tradicional usado por homens e mulheres – por roupas ocidentais. Já começam a surgir algumas discotecas e bares, mas mal a noite cai, as ruas ficam praticamente sem luz e não há restaurante que não tenha como casa de banho, uma latrina, e como guardanapos, rolos de papel higiénico.
Aqui fica o retrato de um país lindo, fascinante e único, em tempos que se querem e se acredita (?) que sejam de mudança.
Yangon
É o ponto de desembarque da grande maioria dos turistas que chegam a Myanmar e a primeira impressão é que se chegou a um país muito civilizado, segundo os parâmetros ocidentais. O aeroporto é novo, moderno, com ar condicionado, câmaras de filmar de última geração e grandes placards publicitários a anunciar a chegada da “Smart Tv”, da “Visa” e da “Mastercard”.
Mas mal se sai do aeroporto apercebemo nos que este não é de todo representativo nem da cidade, nem do país.
Embora Yangon tenha a maior concentração de edifícios coloniais de toda a Birmânia, e estes estejam bem conservados, a maioria dos restantes prédios são decrépitos, as estradas esburacadas, o trânsito caótico. Dizem me que não é permitida a circulação de motas porque há alguns anos atrás uma embateu no carro de um dos generais da Junta Militar. Não sei se é mito ou realidade mas a verdade é que não se vê um único veículo de duas rodas nas ruas da cidade.
Yangon já foi em tempos a capital do país, até que em 2005 os governantes acharam que o seu caos era irreversível e mais valia mudar a sede de estado para outra cidade construída então de raiz, Nay Pyi Tawn.
Apesar disso, Yangon continua a ser um dos pontos mais turísticos a nível nacional, tudo devido ao magnifico templo Shwedagon, o principal centro religioso de Myanmar. Gigantesco e folheado a ouro, é tão imponente quanto mágico. Segundo a lenda, as suas estupas contêm relíquias de quatro antigos budas e oito cabelos do buda Siddharta.
Pelos pátios em redor, passeiam se diariamente milhares de pessoas, entre monges, turistas e cidadãos locais que procuram um pouco de paz no meio de uma cidade que fervilha. Mesmo à noite, quando Yangon cai numa escuridão total, o Shwedagon mantém-se iluminado, com os seus picos cónicos a destacarem-se no horizonte da cidade. Muito mais bonito do que se possa descrever em palavras.
Para lá do templo e das ruas da baixa onde se podem ver dezenas de edifícios da época colonial, quando os britânicos eram os donos e senhores da então Birmânia, outra das atracções de Yangon é o mercado Bogyoke Aung San Market, com mais de 2000 lojas e bancas, ponto de encontro das culturas locais – birmanesa, indiana, chinesa. Tudo se vende, tudo se compra. Até há quem venda pequenos cadernos onde se lê na capa: “Regras do Governo para o Investimento Estrangeiro”.
Cheira a incenso e a chamuças, e na praça central vêem-se as gentes locais sentadas em mesinhas baixas a bebericar chá enquanto lêem o jornal. As vendedoras de tecidos, artesanato, frutas e fritos têm as maçãs do rosto pintadas com a famosa “thanaka”, uma pasta de madeira ralada, misturada com água. Explicam-me que esta tradição cosmética tem mais de 2 mil anos e que é uma espécie de marca registada de Myanmar. Segundo as birmanesas, a “thanaka” faz com que a pele fique mais suave, protegida do sol e além disso evita o acne e refresca. Não sei se acredite ou não, mas a verdade é que são raras as mulheres e crianças que não usam a “thanaka”.
Continuando pelos ex-libris de Yangon, outro dos “must” a não perder é um jantar na 19ª rua do bairro chinês. Uma artéria que se durante o dia é perfeitamente normal, à noite transforma-se: fechada ao trânsito e repleta de bancas de grelhados e mesas atulhadas de alguns turistas e muitos jovens locais. Se conseguir uma mesa livre pode ser tarefa árdua, conseguir escolher o que jantar pode ser ainda mais difícil. Embora esteja tudo exposto nas bancas, muitas das coisas ou não se percebe o que são, ou se se percebe, era melhor não perceber. Um conselho? Em qualquer restaurante birmanês há sempre ovos de codorniz, pratos de caril e vegetais… isso se não se sentir suficientemente corajoso para experimentar uma espetada de morcego.
Depois é descontrair e aproveitar a noite, que em Yangon são sempre quentes e, pelo menos na 19ª rua, bastante animadas.
Lago Inle
Há sítios que são puramente mágicos, sítios que só acreditamos quando vemos, que têm algo de místico, que nos deixam de respiração suspensa. E foi isso que me aconteceu no lago Inle. Já tinha ouvido falar, já tinha visto fotos, mas nada que me preparasse para o que foi dar por mim numa pequena canoa, a desembocar no lago, enorme, a parecer um mar, entre as brumas. As montanhas à volta, o silêncio total, ao longe as pequenas aldeias de palafitas, os jardins flutuantes onde a necessidade e o engenho faz com que as tribos locais inventem e reinventem formas de cultivo. Algum arroz, tomate, pimentos.
E os pescadores, pequenos pontos no meio do lago, autênticos malabaristas, inventores de uma técnica única no mundo de remar de pé com um dos remos presos à perna, de forma a terem as mãos livres para lançar e apanhar as redes.
Nas margens, em pequenas fábricas artesanais, as mulheres passam os dias a enrolar cigarros e charutos caseiros feitos de ervas, folhas de tabaco e uma pasta que deixa os dentes manchados de encarnado escuro. Ninguém fala inglês, mas sorriem, sorriem muito para os turistas que passam e a quem estendem o artesanato da terra. Já houve o tempo em que ninguém de fora aqui chegava, agora já se chega mas mesmo assim, ainda em doses que não perturbam a beleza e a paz do local. E assim se espera que continue.
Num dos canais que desembocam no lago, fica a vila de Nyanugshwe, onde se encontram a maioria dos alojamentos, dos restaurantes, cafés, lojinhas e mercado local, cheio de cores e cheiros. Já há pizzarias e hambúrgueres para alegrar os menos aventureiros, mas ainda se mantém muitos restaurantes de comida tradicional; caril de frango, de peixe ou de bife, acompanhado de várias tacinhas com molhos picantes, arroz, vegetais salteados, ovos cozidos e saladas frescas. Escolho para jantar o Lin Hteet, considerado um dos melhores da vila. Logo à entrada, pendurada na parede, vejo uma grande fotografia da Aung San Suu Kyi. É um dos exemplos da mudança, da esperança numa democracia próxima. “Até há um ano atrás se alguém pusesse um cartaz com a foto da “Mãe Suu” na parede do seu restaurante ou da sua loja, era logo preso”, diz-me o dono do espaço. “Hoje em dia já não é assim, já há mais liberdade”. E remata, confiante: “Estamos no bom caminho, vamos ter a nossa “Mãe” à frente da nossa nação.”
Mandalay
É a segunda maior cidade do país e apesar de ser uma grande urbe, com um trânsito infernal, muito barulho e pouco asseio, vale a pena pelos tesouros que têm à volta como a ponte U Bein, o Pagode de Mingun ou o Monte Sagaing. Para além disso, é em Mandalay que pela primeira vez reparo nas diferenças extremas de classes. Enquanto no lago Inle – como em geral no resto do país – 90 por cento dos birmaneses não têm electricidade em casa, aqui já se encontram restaurantes-bar como o Koffee Corner onde os locais chegam de Chrysler, bebem Jack Daniels e Jonhie Walker’s e comem saladas “Nicoise” e “Club Sandwich’s”, enquanto os Ipad’s e os Iphones descansam em cima das mesas. São filhos de indianos, de chineses, de generais birmaneses. Usam roupas modernas, penteados à personagem de “manga” japonesa.
Hei-de encontrar novamente alguns dos jovens desta tribo urbana na ponte de U Bein, a maior ponte de teca do mundo, ao pôr do sol, a passearem com as namoradas. Já ao amanhecer o cenário é totalmente diferente, quando centenas de monges atravessam a ponte a vir dos seus templos para a cidade, onde vão encher as suas taças com os donativos do dia. “Não há país tão religioso como o nosso, aqui os monges estão ao nível de Deus e compete a cada um de nós zelar pelas suas necessidades”, explica-me Lin, o guia que me acompanha em Mandalay. Tem 24 anos, trabalha como recepcionista num hotel mas só ganha 125 euros por mês, por isso nas horas vagas vai fazendo alguns trabalhos como guia turístico.
Depois de um dia a visitarmos o Monte Sagaing, com as suas centenas de pagodas brancas – vivem aqui mais de 6000 monges –, a pagoda de Mingu e a cidade antiga de Amarapura, sentamo nos a jantar no restaurante Green Elephant, no centro da cidade e Lin conta me em traços gerais a sua história. “Há 5 anos atrás estive preso durante 2 semanas, só porque um dia entre amigos, num restaurante, falei mal da Junta Militar. Agora já não é assim, agora já não há medo, agora já podemos falar em público.”. “Se ainda há presos políticos? Sim ainda há, mas já são só poucas centenas, de resto foram todos libertados. Estamos a caminho da democracia, nas últimas eleições a Aung San Suu Kyi, já ganhou, agora se ganhar as próximas tenho a convicção que lhe vão dar o lugar. Toda a gente gosta dela, até o Obama gosta dela, diz que somos um exemplo para a democracia.” E Lin acredita. E Lin acredita no futuro e sorri. Sorri muito, aliás, como todos os birmaneses. Se estão felizes? Não sei. Se são muito simpáticos? Isso, sem dúvida.
Bagan
Diz-se que se deve deixar o melhor para o fim. Não sei é verdade ou não, mas sei que Bagan foi o meu último destino em Myanmar e posso dizer que foi o melhor que vi. O mais , o mais avassalador. Se não fosse por tudo o resto, Bagan já valia só por sim a viagem. Porque é único, porque não imagino outro local assim: mais de 3000 templos e estupas espalhadas por uma planície de terra cor de fogo numa área de 42 km2. Como se tivessem despontado da terra, qual natureza, qual fenómeno.
A maioria das suas pagodas foram construídas do século XI ao século XIII, durante o tempo em que Bagan era a capital do Primeiro Império birmanês. Hoje é um dos mais poderosos cenários do sudeste asiático.
De preferência tente visitar Bagan às primeiras horas da manhã ou já ao pôr-do sol, de bicicleta ou de charrete e nas horas de maior calor fique pela piscina do hotel ou descanse num restaurante com ar condicionado. Se em Myanmar em geral o calor é muito, em Bagan é abrasador. Mas vale a pena. Se vale.
Se não tiver tempo para ver muitos templos, aqui ficam alguns a não perder (de uma lista interminável): o Ananda Pahto, do ano 1105, o Shwezigon Paya, considerado um dos mais belos do mundo e o piramidal Dhamamyangyi.
Não perca o entardecer no cimo do Shwesandaw Paya, do Buledi ou do Thabeik Hmauk, este último bem menos concorrido. Fique em silêncio, olhe em redor e desfrute do momento. Aposto que nunca mais o irá esquecer.
Catarina Serra Lopes
Viagem à “Terra Dourada”
“Templos e pagodes a perder vista, folheados a ouro, quase mais carroças do que carros, planícies cor de fogo um povo do mais simpático que existe, paisagens arrebatadoras, um enorme lago entre brumas. Monges e mais monges, mercados de mil aromas. De Yangon a Bagan, uma viagem por Myanmar, naqueles que se espera serem os seus últimos tempos de ditadura.”
“Isto é a Birmânia (actual Myanmar), uma terra totalmente diferente de qualquer outra que se possa conhecer”, escreveu o Nobel da Literatura, Rudyard Kipling, em 1898. Mais de um século depois, as suas palavras parecem ter ficado suspensas no tempo e a antiga Burma continua a ser um mundo completamente à parte.
Tão belo quanto pouco desenvolvido. Tão afável quanto misterioso. Tão pobre quanto rico. Com um povo tão sofrido quanto apaixonado. Com uma fé inabalável e uma estoicidade única.
Com cidades caóticas como Yangon ou Mandalay, com paisagens de uma profunda paz como Bagan com os seus 3 mil templos, com um lago de uma beleza ímpar como o lago Inle.
Myanmar é sem dúvida uma terra à parte e um dos destinos mais exóticos no mundo. Até há bem pouco tempo de portas fechadas ao exterior, isolada por um embargo internacional e de costas voltadas ao turismo.
Myanmar, lá longe, de onde apenas nos acostumámos a ouvir (más) noticias de uma Junta Militar que, sem dó nem piedade, governa o país desde 1962, e de uma exemplar guerreira de seu nome Aung San Suu Kyi, prémio Nobel da Paz, que desde 1988 luta pela vitória da democracia no seu país. Depois de 15 anos em prisão domiciliária e de uma vitória com 90 por cento dos votos nas eleições de 2012 – o que mesmo assim não destronou a Junta Militar – os birmaneses mantém agora a esperança focada em 2015, altura em que voltarão às urnas e em que acreditam que será então derrubada a ditadura.
Enquanto o futuro não chega, Myanmar vai vivendo os seus dias (quase) cristalizada no tempo. Tal cenário de filme de época. Não há rede de telemóvel, a internet – para a população local – existe mas é tão cara quanto lenta, nas ruas das cidades vêem-se bancas a alugar máquinas de escrever para se alguém precisar de dactilografar um texto e até há escassos meses não havia caixas multibanco.
Em todas as cidades e vilas existem “internet cafés” mas só os estrangeiros têm acesso e o passaporte fica registado. Os jovens, pelo menos alguns, já começam a usar penteados excêntricos e a trocar o “longhi” – traje tradicional usado por homens e mulheres – por roupas ocidentais. Já começam a surgir algumas discotecas e bares, mas mal a noite cai, as ruas ficam praticamente sem luz e não há restaurante que não tenha como casa de banho, uma latrina, e como guardanapos, rolos de papel higiénico.
Aqui fica o retrato de um país lindo, fascinante e único, em tempos que se querem e se acredita (?) que sejam de mudança.
Yangon
É o ponto de desembarque da grande maioria dos turistas que chegam a Myanmar e a primeira impressão é que se chegou a um país muito civilizado, segundo os parâmetros ocidentais. O aeroporto é novo, moderno, com ar condicionado, câmaras de filmar de última geração e grandes placards publicitários a anunciar a chegada da “Smart Tv”, da “Visa” e da “Mastercard”.
Mas mal se sai do aeroporto apercebemo nos que este não é de todo representativo nem da cidade, nem do país.
Embora Yangon tenha a maior concentração de edifícios coloniais de toda a Birmânia, e estes estejam bem conservados, a maioria dos restantes prédios são decrépitos, as estradas esburacadas, o trânsito caótico. Dizem me que não é permitida a circulação de motas porque há alguns anos atrás uma embateu no carro de um dos generais da Junta Militar. Não sei se é mito ou realidade mas a verdade é que não se vê um único veículo de duas rodas nas ruas da cidade.
Yangon já foi em tempos a capital do país, até que em 2005 os governantes acharam que o seu caos era irreversível e mais valia mudar a sede de estado para outra cidade construída então de raiz, Nay Pyi Tawn.
Apesar disso, Yangon continua a ser um dos pontos mais turísticos a nível nacional, tudo devido ao magnifico templo Shwedagon, o principal centro religioso de Myanmar. Gigantesco e folheado a ouro, é tão imponente quanto mágico. Segundo a lenda, as suas estupas contêm relíquias de quatro antigos budas e oito cabelos do buda Siddharta.
Pelos pátios em redor, passeiam se diariamente milhares de pessoas, entre monges, turistas e cidadãos locais que procuram um pouco de paz no meio de uma cidade que fervilha. Mesmo à noite, quando Yangon cai numa escuridão total, o Shwedagon mantém-se iluminado, com os seus picos cónicos a destacarem-se no horizonte da cidade. Muito mais bonito do que se possa descrever em palavras.
Para lá do templo e das ruas da baixa onde se podem ver dezenas de edifícios da época colonial, quando os britânicos eram os donos e senhores da então Birmânia, outra das atracções de Yangon é o mercado Bogyoke Aung San Market, com mais de 2000 lojas e bancas, ponto de encontro das culturas locais – birmanesa, indiana, chinesa. Tudo se vende, tudo se compra. Até há quem venda pequenos cadernos onde se lê na capa: “Regras do Governo para o Investimento Estrangeiro”.
Cheira a incenso e a chamuças, e na praça central vêem-se as gentes locais sentadas em mesinhas baixas a bebericar chá enquanto lêem o jornal. As vendedoras de tecidos, artesanato, frutas e fritos têm as maçãs do rosto pintadas com a famosa “thanaka”, uma pasta de madeira ralada, misturada com água. Explicam-me que esta tradição cosmética tem mais de 2 mil anos e que é uma espécie de marca registada de Myanmar. Segundo as birmanesas, a “thanaka” faz com que a pele fique mais suave, protegida do sol e além disso evita o acne e refresca. Não sei se acredite ou não, mas a verdade é que são raras as mulheres e crianças que não usam a “thanaka”.
Continuando pelos ex-libris de Yangon, outro dos “must” a não perder é um jantar na 19ª rua do bairro chinês. Uma artéria que se durante o dia é perfeitamente normal, à noite transforma-se: fechada ao trânsito e repleta de bancas de grelhados e mesas atulhadas de alguns turistas e muitos jovens locais. Se conseguir uma mesa livre pode ser tarefa árdua, conseguir escolher o que jantar pode ser ainda mais difícil. Embora esteja tudo exposto nas bancas, muitas das coisas ou não se percebe o que são, ou se se percebe, era melhor não perceber. Um conselho? Em qualquer restaurante birmanês há sempre ovos de codorniz, pratos de caril e vegetais… isso se não se sentir suficientemente corajoso para experimentar uma espetada de morcego.
Depois é descontrair e aproveitar a noite, que em Yangon são sempre quentes e, pelo menos na 19ª rua, bastante animadas.
Lago Inle
Há sítios que são puramente mágicos, sítios que só acreditamos quando vemos, que têm algo de místico, que nos deixam de respiração suspensa. E foi isso que me aconteceu no lago Inle. Já tinha ouvido falar, já tinha visto fotos, mas nada que me preparasse para o que foi dar por mim numa pequena canoa, a desembocar no lago, enorme, a parecer um mar, entre as brumas. As montanhas à volta, o silêncio total, ao longe as pequenas aldeias de palafitas, os jardins flutuantes onde a necessidade e o engenho faz com que as tribos locais inventem e reinventem formas de cultivo. Algum arroz, tomate, pimentos.
E os pescadores, pequenos pontos no meio do lago, autênticos malabaristas, inventores de uma técnica única no mundo de remar de pé com um dos remos presos à perna, de forma a terem as mãos livres para lançar e apanhar as redes.
Nas margens, em pequenas fábricas artesanais, as mulheres passam os dias a enrolar cigarros e charutos caseiros feitos de ervas, folhas de tabaco e uma pasta que deixa os dentes manchados de encarnado escuro. Ninguém fala inglês, mas sorriem, sorriem muito para os turistas que passam e a quem estendem o artesanato da terra. Já houve o tempo em que ninguém de fora aqui chegava, agora já se chega mas mesmo assim, ainda em doses que não perturbam a beleza e a paz do local. E assim se espera que continue.
Num dos canais que desembocam no lago, fica a vila de Nyanugshwe, onde se encontram a maioria dos alojamentos, dos restaurantes, cafés, lojinhas e mercado local, cheio de cores e cheiros. Já há pizzarias e hambúrgueres para alegrar os menos aventureiros, mas ainda se mantém muitos restaurantes de comida tradicional; caril de frango, de peixe ou de bife, acompanhado de várias tacinhas com molhos picantes, arroz, vegetais salteados, ovos cozidos e saladas frescas. Escolho para jantar o Lin Hteet, considerado um dos melhores da vila. Logo à entrada, pendurada na parede, vejo uma grande fotografia da Aung San Suu Kyi. É um dos exemplos da mudança, da esperança numa democracia próxima. “Até há um ano atrás se alguém pusesse um cartaz com a foto da “Mãe Suu” na parede do seu restaurante ou da sua loja, era logo preso”, diz-me o dono do espaço. “Hoje em dia já não é assim, já há mais liberdade”. E remata, confiante: “Estamos no bom caminho, vamos ter a nossa “Mãe” à frente da nossa nação.”
Mandalay
É a segunda maior cidade do país e apesar de ser uma grande urbe, com um trânsito infernal, muito barulho e pouco asseio, vale a pena pelos tesouros que têm à volta como a ponte U Bein, o Pagode de Mingun ou o Monte Sagaing. Para além disso, é em Mandalay que pela primeira vez reparo nas diferenças extremas de classes. Enquanto no lago Inle – como em geral no resto do país – 90 por cento dos birmaneses não têm electricidade em casa, aqui já se encontram restaurantes-bar como o Koffee Corner onde os locais chegam de Chrysler, bebem Jack Daniels e Jonhie Walker’s e comem saladas “Nicoise” e “Club Sandwich’s”, enquanto os Ipad’s e os Iphones descansam em cima das mesas. São filhos de indianos, de chineses, de generais birmaneses. Usam roupas modernas, penteados à personagem de “manga” japonesa.
Hei-de encontrar novamente alguns dos jovens desta tribo urbana na ponte de U Bein, a maior ponte de teca do mundo, ao pôr do sol, a passearem com as namoradas. Já ao amanhecer o cenário é totalmente diferente, quando centenas de monges atravessam a ponte a vir dos seus templos para a cidade, onde vão encher as suas taças com os donativos do dia. “Não há país tão religioso como o nosso, aqui os monges estão ao nível de Deus e compete a cada um de nós zelar pelas suas necessidades”, explica-me Lin, o guia que me acompanha em Mandalay. Tem 24 anos, trabalha como recepcionista num hotel mas só ganha 125 euros por mês, por isso nas horas vagas vai fazendo alguns trabalhos como guia turístico.
Depois de um dia a visitarmos o Monte Sagaing, com as suas centenas de pagodas brancas – vivem aqui mais de 6000 monges –, a pagoda de Mingu e a cidade antiga de Amarapura, sentamo nos a jantar no restaurante Green Elephant, no centro da cidade e Lin conta me em traços gerais a sua história. “Há 5 anos atrás estive preso durante 2 semanas, só porque um dia entre amigos, num restaurante, falei mal da Junta Militar. Agora já não é assim, agora já não há medo, agora já podemos falar em público.”. “Se ainda há presos políticos? Sim ainda há, mas já são só poucas centenas, de resto foram todos libertados. Estamos a caminho da democracia, nas últimas eleições a Aung San Suu Kyi, já ganhou, agora se ganhar as próximas tenho a convicção que lhe vão dar o lugar. Toda a gente gosta dela, até o Obama gosta dela, diz que somos um exemplo para a democracia.” E Lin acredita. E Lin acredita no futuro e sorri. Sorri muito, aliás, como todos os birmaneses. Se estão felizes? Não sei. Se são muito simpáticos? Isso, sem dúvida.
Bagan
Diz-se que se deve deixar o melhor para o fim. Não sei é verdade ou não, mas sei que Bagan foi o meu último destino em Myanmar e posso dizer que foi o melhor que vi. O mais imponente, o mais avassalador. Se não fosse por tudo o resto, Bagan já valia só por sim a viagem. Porque é único, porque não imagino outro local assim: mais de 3000 templos e estupas espalhadas por uma planície de terra cor de fogo numa área de 42 km2. Como se tivessem despontado da terra, qual natureza, qual fenómeno.
A maioria das suas pagodas foram construídas do século XI ao século XIII, durante o tempo em que Bagan era a capital do Primeiro Império birmanês. Hoje é um dos mais poderosos cenários do sudeste asiático.
De preferência tente visitar Bagan às primeiras horas da manhã ou já ao pôr-do sol, de bicicleta ou de charrete e nas horas de maior calor fique pela piscina do hotel ou descanse num restaurante com ar condicionado. Se em Myanmar em geral o calor é muito, em Bagan é abrasador. Mas vale a pena. Se vale.
Se não tiver tempo para ver muitos templos, aqui ficam alguns a não perder (de uma lista interminável): o Ananda Pahto, do ano 1105, o Shwezigon Paya, considerado um dos mais belos do mundo e o piramidal Dhamamyangyi.
Não perca o entardecer no cimo do Shwesandaw Paya, do Buledi ou do Thabeik Hmauk, este último bem menos concorrido. Fique em silêncio, olhe em redor e desfrute do momento. Aposto que nunca mais o irá esquecer.
Catarina Serra Lopes”
Reportagem originalmente publicada no jornal SOL
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