“Podia ter sido um filme. Mas às vezes a realidade ultrapassa a ficção.
Tal como em 1991, quando Geena Davis e Susan Sarandon, no mítico “Thelma and Louise”, decidiram partir pelos Estados Unidos fora a bordo de um Thunderbird de 1966, também Ana e Patricia, duas lisboetas recém-universitárias, resolveram em 92 fazer as malas e partir pelas estradas dos “States”. Um mês e meio de viagem, do Atlântico ao Pacifico. Dez estados, três fusos horários, muitas aventuras pela certa.
Os preparativos começaram dois meses antes, ainda nos bancos da faculdade. Patrícia começou então a fazer contactos com familiares imigrados já há três gerações nas redondezas de Boston. Telefonema atrás de telefonema e ficou decidido que Tony, um primo afastado, nunca antes visto, as iria acompanhar na viagem.
No dia combinado, depois de quase doze horas de voo, lá as esperava no aeroporto de Chicago, o sorridente Tony, senhor já dos seus 40 e muitos anos, “emigrante estabelecido, dono de negócios vários”, pronúncia entre o “madeirense e o bostoense”, barba farta, barriguinha proeminente. Para a aventura tinha alugado uma “banheira bem americana, descapotável, azul bebé”, tal como nos filmes.
Mapas, água, malas no porta bagagens e lá partiram os três. A ideia era seguir pela lendária Route 66, atravessar montes e vales, prados e pradarias, desertos e desfiladeiros. Mas nada seria como a ideia. Desde o inicio, para júbilo das duas jovens, Tony revelou-se um “one man show”, de artimanhas várias e supresas constantes.
Ora seguia por uma estrada, ora mudava o percurso à última da hora, ora entrava num Estado, ora saia. Ora seguia o plano, ora surpreendia-as com uma rota de última hora. “Assim é mais divertido, não gosto de coisas planeadas”, dizia ele.
Todas as noites, pelos motéis de estrada, as surpresas repetiam-se. Adormeciam com um Tony de cabelo castanho e acordavam com um Tony ruivo, adormeciam com um Tony de bigode e pêra e acordavam com um Tony de cara rapada. “Adoro ir mudando de fisionomia, senão farto-me de mim, isto de uma pessoa olhar-se ao espelho e ver a sempre a mesma fronha não está com nada”, dizia ele. E as duas amigas riam-se e esperavam pelo novo Tony da manhã seguinte.
Durante um mês em meio foi assim. Pelas planícies de Illinois, pelo Grand Canyon, pelas luzes de Las Vegas, pelo deserto do Death Valley. Atravessaram reservas de índios, redutos de cowboys, estradas de cactos, dunas e coiotes. Chegaram a Los Angeles, subiram pelo Big Sur, acabaram em São Francisco. Voltaram para Portugal cheias de aventuras, carregadas de fotos e com a promessa de um dia voltar.
Dois anos depois, Ana cumpriu a promessa. Uma proposta de emprego em Nova Iorque levou-a de malas e bagagens de volta aos Estados Unidos e toca de procurar o Tony, nunca mais visto nem falado. Qual não foi a surpresa quando o soube então preso. Por burlas e fraudes várias. “Toda a viagem tinha sido uma fuga, ele já na altura andava a ser procurado pela policia”, contou-me Ana na primeira pessoa, há umas semanas atrás, numa noite de caipirinhas numa varanda em Ipanema, onde vive agora. Debaixo de um céu estrelado, relatou-me ao pormenor toda a travessia. Toda a emoção. “Foi incrível como nunca suspeitámos de nada e tudo afinal fazia tanto sentido.” E fazia. Se não pensássemos sempre que os filmes não saem da tela.
“Sabes uma coisa? Já passaram quinze anos, já fiz dezenas de viagens, mas essa continua a ser a viagem da minha vida.” E eu acredito. Há viagens assim. Únicas. Irrepetíveis. Que davam um filme.
Catarina Serra Lopes”
Crónica originalmene publicado no supleent Fugas
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