Route 66 – a continuação

Depois de Chicago, o arranque pela Route, Illinois fora. Por campos de trigo até à porta do Oeste, entre velhos e novos agricultores, ao som de muitos “blues”. Lojas só para adultos, homens de jardineiras, recordações dos anos 50. Dezenas de cavernas, museus de bandidos, hambúrgueres de búfalo e loiras platinadas que sonham com Hollywood.

3º dia. De Chicago a St Louis

Por incrível que possa parecer, a lendária Route 66 começa bem no centro de Chicago, logo à saída do Loop, onde os prédios tentam tocar o céu. Para lá das ruas largas e dos milhares de pessoas que cruzam as avenidas em passo rápido, a cidade estende-se para Sul, por entre velhos armazéns, dezenas de parques de estacionamento, bairros sociais e zonas duvidosas. São precisas umas poucas dezenas de quilómetros para que se abram sem fim as planícies do Illinois. Até ao horizonte, este é o Estado dos campos de milho, das vilas pacatas com casinhas de madeira e jardins arranjados, das ruas desertas, das “pick-ups” e dos tractores. Lanço-me à estrada logo de manhã, um céu azul brilhante, 450 quilómetros pela frente. À beira da Mother Road vão-se sucedendo algumas das antigas estações de serviço, restaurantes, bares e móteis que conseguiram sobreviver à passagem dos tempos e ao encerramento da velha estrada. As empregadas de mesa ainda usam saias “evasées” e soquetes brancos, os clientes continuam a vestir camisas de flanela aos quadrados, jeans ou jardineiras, boné na cabeça, caneca de café na mão. “Uma vida calma, sem grandes pressas, sem grandes aflições, a não ser quando o Chicago Bulls perde”, explica Bill Sullivan, encostado ao balcão do Pop Hicks Restaurant, em Clinton.

Agricultor, filho de velhos agricultores e pai de jovens agricultores, toda a vida viveu à beira da Route 66. Lembra-se dos inúmeros camiões, dos carros sem fim, das pessoas, das carroças e dos acidentes, dos muitos acidentes que começaram a dar-se devido à exiguidade da estrada. “Era uma alegria, todos os dias se conhecia gente nova, depois a Route saiu dos mapas e nós praticamente também. Mas é uma vida boa”, remata, com um gole de Budweiser.

Dwight, Pontiac, Chenoa, Lexington, Atlanta, Lincoln, Broadwell. É já noite quando chego ao Ariston, em Litchfield, um emblemático restaurante em que a família Adam recebe os viajantes desde 1924. Com um grande sorriso, de braços abertos e cheios de histórias para acompanhar o jantar. “Passa por aqui muita gente, ao contrário do que se podia pensar esta estrada está bem viva, só numa das últimas semanas tivemos aqui pessoas da Suiça, da Polónia, do Japão e da Nova Zelândia”, conta Greg Adam, patriarca do clã, enquanto desfolha livros de autógrafos e álbuns cheios de dedicatórias. “Veio de Portugal? Que engraçado, acho que nunca vi portugueses por aqui. Normalmente são australianos, noruegueses, mas há de tudo, houve um tipo da Califórnia que resolveu fazer a 66 de bicicleta para festejar os seus 66 anos, houve outro que resolveu fazer de cadeira de rodas”, conta entre sonoras gargalhadas. “É preciso é ter espírito de aventura e imaginação e o resto já vem no caminho.”

A estrada continua em frente, pelas cavernas do Missouri até Oklahoma, atravessando as longas planícies do Texas rumo a Santa Fé, nas terras quentes do New México.Com muitos índios bêbados, hambúrgueres de búfalo, loiras platinadas e luzes misteriosas. E o deserto, imponente, magnífico, com um céu cor de chumbo e uma terra cor de fogo.

4ª Dia – Pelo Estado do Missouri

A estrada continua e milha após milha vou-me cruzando com dezenas de anúncios a um Estado que parece feito de cavernas. Não faltam também museus em honra de bandidos famosos, como Jesse James, e dezenas e dezenas de lojas “só para adultos”.

O nome da Route 66 é explorado até à exaustão, tudo se vende com o nome da mítica estrada, desde canecas a revólveres, de hambúrgueres a móteis, canoas, lenços, postais, copos para “shots”, saleiros e pimenteiros. A nostalgia chegou aqui e resolveu ficar, como é exemplo disso a pequena cidade de Carthage, já quase na fronteira com o Kansas. Cenário escolhido para a rodagem da trilogia “Regresso ao Futuro”, os seus habitantes continuam a viver das memórias dos tempos áureos da Route e dos meses de ouro das filmagens. “Se calhar é por estarmos tão presos ao passado que porta sim, porta não é uma loja de antiguidades”, comenta Sophie Martin, habitante local. “Mas acima de tudo é uma cidade pacata onde ainda é bom viver”, sublinha. Olho em volta para as ruas desertas, para a Praça Central que continua a parecer ser simplesmente cenário e não me restam dúvidas que “pacata” é a palavra certa.

Chego ao Kansas já ao cair da noite, pronta para seguir em frente os poucos vinte quilómetros que separam este Estado do de Oklahoma. Não fico com saudades, as ruas por onde passo são largas e poeirentas, ladeadas por grandes armazéns abandonados, digno de cenário de um filme de cowboys.

À entrada de Oklahoma não se vê vivalma pelas ruas e a única iluminação é um circulo de luz perdido lá ao longe. Tento alcançá-lo mas a luz vai-se afastando, cada vez mais perto, cada vez mais longe. Rendo-me e sigo em frente até ao Buffalo Burguer, na vila de Miami. Enquanto devoro a sanduíche, maravilhada com a carne de búfalo, a empregada loira platinada apressa-se a esclarecer-me o mistério da luz. “Ninguém sabe de onde vem, nem porquê, é assim desde sempre”, explica com um encolher de ombros. “É mesmo a única coisa que se passa aqui nesta terra de ninguém”, comenta com um olhar melancólico. 31 anos, divorciada, unhas postiças, um filho já adolescente. “Não tinha grande cabeça para estudar e aqui estou há quase 15 anos. Queria ser actriz, ainda quero, mas agora cada vez é mais complicado, já não sou nova”, desabafa, enquanto limpa as mesas vizinhas. “Vai para Los Angeles? Que sonho, nunca lá fui mas deve ser lindo, só actores pelas ruas, que sonho, que sonho.”

Acabo o hambúrguer despeço-me da loira platinada e faço-me novamente à estrada. Rumo ao sonho.

 

5º Dia – De Oklahoma ao Texas

Sigo estrada fora pelo Estado conhecido pelas lendárias tempestades de areia que levaram ao grande exôdo dos anos 30. Milhares e milhares de pessoas abandonaram então as suas terras e puseram-se ao caminho, pela Route 66 até à Califórnia, em busca do mítico sonho americano.

Paro em Tulsa no Tally’s Café e sento –me ao balcão a beber um café. As paredes são de azulejos pretos e brancos, há vinis pendurados e uma juke box ao fundo da sala. Os homens vestem quase todos jardineiros e comem-se panquecas com caramelo. Ao meu lado, senta-se um adolescente enorme com uma t-shirt que diz “I am a dog”. O tempo que levo a beber o café é suficiente para que ele devore uma grande costeleta de novilho, um prato a transbordar de batatas fritas e um batido de morango extra, extra large. No fim sai com alguma dificuldade do banco alto e dirige-se para a porta de gelado na mão. Fico parada a olhar em volta, 60 por cento das pessoas que me rodeiam são extremamente obesas, muito para lá dos limites do razoável. Afinal é mesmo autêntico, estou no país do colesterol.

 

6º Do Texas a Santa Fé

Eu sei que dormir no carro não é de todo seguro, mas o cansaço derrota-me já junto à fronteira com o Texas e a noite é passada em Erick, uma vila abandonada perdida do mundo. Ao amanhecer sou acordada bruscamente por dois seres saltitantes que pulam à volta do carro, batendo nos vidros e fazendo caretas. Cabelos muito compridos, já grisalhos, jardineiras às riscas azuis e brancas, olhos brilhantes, pés descalços, sorriso aberto. Um misto de palhaço e duende. Depois do susto, lá se apresentam como Harley e Annabelle, “os piores cantores da região”, segundo se auto-intitulam. Depois convidam-me a entrar na sua loja, “ que não tem nada para vender”, e contam-me de um só fôlego, a história dos múltiplos objectos que recheiam armários, chão e paredes, memórias de viajantes que por ali passaram. À despedida dão-me um abraço apertado e uma caneca de recordação. “Boa viagem, cuidado com a estrada, nós vamos ficar por aqui, como sempre… a fazer amor”, rematam de sorriso cheio, acenando da porta.

Faço-me à estrada, no Texas, as planícies não têm fim e a Route a maioria das vezes acaba em estradas sem saída. Apesar da mítica ideia dos cowboys a cavalgar pelas pradarias fora, vejo mais hispânicos neste Estado do que propriamente americanos de pele curtida pelo sol e rédeas na mão. Os cabelos são escuros, os olhos rasgados, os corpos roliços. Paro em Amarillo, terra repleta de “panaderias”, “bodegas”, “tacos villas” e bares de aspecto duvidoso. Anne Benedita é uma das locais que começa a chorar a sua história num inglês cantado. Filha de pais mexicanos, nunca foi ao país das suas raízes, mas vive com saudades do que não conhece. Queixa-se do calor forte, das chuvas torrenciais, da falta de emprego, dos quatro filhos que tem que alimentar. No fim, ainda confessa que o marido bebe muito e que não traz dinheiro para casa. Um enredo que no entanto não lhe deixa dúvidas. “Ir viver para o México? Nem pensar, os Estados Unidos são o meu país, George Bush o meu presidente e Amarillo a minha terra, aqui é que eu estou bem”, remata, sem hesitações.

Já a meio da tarde entro pelo Estado do New México, ar-condicionado no máximo, rumo a Santa Fé, capital deste Estado. Uma cidade mística feita de barro, refúgio de artistas cansados das grandes metrópoles de Los Angeles e São Francisco e de yuppies nova – iorquinos entregues a terapias alternativas. Por aqui vive-se sem pressas, na praça central amontoam-se artistas de rua e índios a vender colares. Pergunto o preço de um fio de pedras às cores a um índio de chapéu à cowboy. “São 900 dólares (cerca de 800 euros)”, responde. “O quê?”, pergunto sem crer no preço que ouvi. “Porque é que é tão caro?”. “Porque é o meu trabalho”, responde sem rodeios. Encolho os ombros e vou-me embora. São raros os índios que trabalham e os que o fazem, pelos vistos, fazem-se pagar bem. As reservas são muitas e a maioria vive lá fechado a beber e a drogar-se. Queixam-se que não há trabalho e deixam-se viver com as ajudas do governo que lhes vai dando umas senhas de alimentação e pouco mais. Há quem se chore, há quem já nem isso faça.

 

7º Dia – Do New México aos desertos do Arizona.

Depois de Santa Fé, a estrada abre-se em tons de fogo, em tons de areia. Planícies imponentes e montanhas longínquas perdem-se pela imensidão do território dos índios Navajo.  Passo por Albuquerque, onde as fachadas das casas são decoradas com malaguetas penduradas e sigo para Cubero, terra perdida do mundo, onde Hemingway se isolou para escrever o “Velho e o Mar”, a beber vinho e a olhar para as montanhas. Com o tempo só estas é que restam. Cubero não passa de duas casas em ruínas a caminho de San Fidel. Resta a ironia das coincidências.

Passo por Gallup, cidade junto à reserva dos índios Zuni, e percorro a grande rua central, onde se sucedem dezenas e dezenas de móteis decadentes de beira de estrada. Muitos néons e algumas recordações no El Rancho, o mítico motel por onde passaram figuras como Kirk Douglas, Spencer Tracy, Katherine Hepburn e Humphrey Bogart a meio da rodagem de alguns filmes.

Atravesso a fronteira e entro no Arizona rumo às duas grandes maravilhas naturais da zona: o Painted Desert e o Petrified Forest. Pela primeira vez desde o início da viagem cruzo-me com japoneses de máquina fotográfica a tiracolo e turistas de calções e mochila às costas. Não faz mal, a paisagem é tão bonita, o cenário é de tal forma colossal que há espaço para todos. E o espaço, esse, é mesmo a perder de vista, com todas as cores que se possa imaginar, entre os rosas, os vermelhos e os ocres, em contraste com o céu. O horizonte perde-se de vista, numa imensidão de deserto feito de arco-íris, para que não nos esqueçamos que somos realmente pequeninos.

Sigo em frente, 60 mil acres de um deserto pintado e vou desembocar numa floresta de rocha, onde os troncos das árvores se foram transformando em pedra ao longo dos últimos 225 milhões de anos. Fenómenos que a natureza explica, mas que o olhar não crê. Dou por mim parada junto a um tronco a tocar na rocha sem acreditar no que vejo. Estou perfeitamente maravilhada, sem palavras, felizmente restam imagens.

 

Catarina Serra Lopes

 

Onde ficar

Existem vários móteis à beira de toda a Route 66. Uns melhores do que outros, mas quase todos de indianos, com um certo cheiro a caril e com preços que rondam os 30 euros o quarto duplo.

Em Santa Fé, ao longo da Cerradillos Road tem os alojamentos mais baratos, à volta dos 35 euro por noite, subindo para os 250 euros por quarto duplo caso opte por um dos hotéis bem no centro da cidade.

Onde comer

Ao longo de toda a Route 66 não faltam cafés, restaurantes, snack-bares de beira de estrada e antigos diners. Há muito por onde escolher, mas a ementa fica sempre por hambúrgueres com batatas fritas, panquecas, tacos e fajitas. Para uma verdadeira viagem aos anos 50 não deixar de passar pelo Route 66 Diner em Albuquerque.

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Blog Comments

Olá!

É possível descrever o 3º dia da viagem?

Obrigada,
Marlene

Olá Marlene que estranho… obrigada por me avisar, já pus online o 3º dia. bjs

Olá Catarina.

Quero que saiba que eu estou a adorar a sua viagem, eu e uns amigos meus também estamos a pensar fazer essa viagem, e a Catarina está a fazer aumentar essa vontade. Um Obrigado sincero por partilhar a sua viagem.

Obrigado
Filipe Gomes.

Obrigada Filipe, é uma viagem de sonho. bj
Catarina

Boa noite. Também estou a planear fazer uma viagem semelhante. Em relação aos motéis onde ficou alojado reservou antecipadamente ou não fez reserva ? Obrigada

Olá Joana não fiz reserva mas aconselho sempre a fazer, acabei por dormir algumas noites no carro. Com antecedencia arranjam-se sempre melhores preços e disponibilidade garantida. Se quiser que a ajude eu faço planeamento de viagens incluindo todas as marcações e afins.
Bjs

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