Músicas pele de galinha

Músicas “pele de galinha”

Há 14 anos atrás fui passar um Verão a Baianópolis, uma pequena vila no interior da Baía, lá pelas terras do Brasil. Durante dois meses dei explicações, dinamizei um grupo de jovens local, formei um clube de mães e dei palestras sobre métodos contraceptivos e afins. Pelo meio, nas horas de maior calor, sentava-me com velhos, crianças e jovens à sombra das árvores a cantar músicas, a tocar violão e “a jogar conversa fora”. Havia sempre um sambinha, um chorinho, um axé para animar, que brasileiro tem música no sangue, no coração e no pé.

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Fui-me embora ao entardecer de um dia de final de Setembro, num jipe desconjuntado, de olhos pejados de lágrimas, com toda a vila junta no largo principal a acenar-me.

Não sei como nem porquê, há última da hora e em segredo resolveram fazer-me uma homenagem e despedirem-se de mim a cantarem em coro uma música portuguesa. Não sei onde foram desencantá-la, mas nesse final de tarde, foi o “Restolho” de Mafalda Veiga que ecoou pelas ruas de Baianópolis. Com sotaque brasileiro… “porque é preciso morrer para nascer de novo, semear no pó para voltar a colher…”. E um aceno sem fim. E o jipe a afastar-se lentamente. E eu com a voz embargada a acompanhar o refrão. “….há que penar para aprender a viver…”.

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Há 13 anos atrás, fui passar um Verão ao Madeiral, uma terra perdida no meio de um monte e muito vales, na ilha de São Vicente, em Cabo Verde. Uma terra cheia de cabras e crianças, crianças que não vão à escola para pastar as cabras, cabras que têm tão pouco de comer que se virem uns sapatos verdes, lançam-se esfaimadas a julgar que é um petisco.

Durante dois meses dei aulas a mais de 100 crianças resgatadas do pastoreio, de olhos grandes e surpresos de verem, muitas pela primeira vez, uma pessoa branca  à sua frente. “É tão bonita….”, diziam-me as meninas maravilhadas com o meu cabelo liso. “Um dia quando for grande quero ser como é a senhora professora”, confessavam no meio das lições.

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E eu embevecida presenteava-os com intervalos grandes entre os deveres, cheios de músicas acompanhadas a viola.  Como o meu repertório infantil há muitos anos que não vai para além do “Atirei um pau ao gato”, achei por bem, nesse Verão no Madeiral, ensinar às minhas crianças várias músicas do cancioneiro nacional. De Luís Represas, a Rui Veloso, de GNR a Rádio Macau e por aí fora. Nem um fadinho ou outro escapou.

Qual não foi a minha surpresa quando no dia da minha despedida, dou pelos meus meninos alinhados, com as cabras em redor e o monte por detrás, a cantarem afinadamente um dos hits dos Trovante: “Há sempre alguém que nos diz, tem cuidado. Há sempre alguém que nos faz falta…. Ai saudade.”

 

Não vale a pena dizer o que senti, mas são momentos destes que fazem uma viagem. Há sempre algo de muito emocionante quando ouvimos cantar uma música nossa, de repente num país distante, longe de todo e qualquer contexto habitual.

Que o diga Silvie, brasileira de São Paulo, que vim a conhecer o ano passado na ilha de Koh Tao, no Sul da Tailândia. Eu no meio de uma reportagem, ela no meio de uma volta ao mundo que já  a mantinha afastada de casa há mais de um ano. Sempre com um sorriso e uma boa disposição contagiantes. “Que o mundo é grande, as pessoas são lindas e há que viver e aproveitar enquanto somos jovens”, era o seu lema.

E de repente uma noite, num bar à beira-mar, dou por ela, de pés enterrados na areia, caipirinha na mão e olhos marejados. Pelas colunas, a voz de Caetano Veloso: “Quando a gente gosta é claro que a gente cuida, fala que me ama só que é da boca para fora….”

E a minha brasileirinha destemida, trauteando a música com um fio de voz. “Ai Catarina, quando a gente está longe e ouve de repente assim uma música da nossa terra, bate uma coisa no coração da gente, nem que é  tristeza, nem que é alegria, nem que é saudade… sabe lá a gente o que é…” O que é? “São músicas pele de galinha é o que é”. É a verdade Silvie, são músicas pele de galinha.”

Crónica originalmente publicada no suplemento Fugas do jornal Público.

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